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A MULHER EM MARX

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Jomar Ricardo Silva*

 

Em 1846, um jovem chamado Karl Marx (1818-1883), depois de ter sido expulso da França por suas atividades políticas, publicou um ensaio: “Sobre o suicídio”. Na verdade, a publicação guarda uma co-autoria, a de Jacques Peuchet (1758-1830), um arquivista da polícia francesa que no transcorrer da vida ocupou várias funções públicas. Essas memórias, construídas a partir das experiências dele no âmbito criminal, foram traduzidas para o alemão por Marx, entremeando o texto original com as próprias concepções. Em 2006, o texto recebeu uma versão em português, publicado pela editora Boitempo.

Os autores relatam as circunstâncias que ocasionaram quatro suicídios. Longe de apontar apenas fatores de ordem pessoal, indicamcausas socioeconômicas para explicar o aumento de casos desse tipo de morte, “pois, na época da paralisação e das crises da indústria, em temporadas de encarecimento dos meios de vida e de invernos rigorosos, esse sintoma é sempre mais evidente e assume um caráter epidêmico. A prostituição e o latrocínio aumentam, então, na mesma proporção”. Peuchet não era economista, cientista ou filósofo, mas conseguiu perceber no suicídio um sintoma de graves problemas sociais.

Os fatos registrados no libelo envolveram o que hoje veio a denominar-se de relações de gênero. Três acarretando a morte de mulheres e um que diz respeito a um funcionário publico.

Uma jovem recebe um convite para ir a uma festa na casa dos familiares do seu futuro marido. Os pais dela permitem, mas por razões de trabalho não a acompanharam. Ela se deixou ficar depois dos folguedos e no calor dos sentimentos que fluíam entre os dois entregou-se ao noivo. Ao retornar de manhã para casa sozinha, encontrou os pais e padrinhos enfurecidos com sua atitude. Eles “cobriram-na com os mais vergonhosos nomes e impropérios.” (grifo do autor). A filha do alfaiate, censurada pela moral do meio familiar, jogou-se na correnteza do rio Sena para encontrar a morte.

A crítica de Marx vai em direção ao poder dos familiares que, de modo despótico, submetem-se a reproduzir relações injustas na sociedade. Dizia ele: “O mau uso dessa autoridade é igualmente uma compensação grosseira para o servilismo e a subordinação aos quais essas pessoas estão submetidas, de bom ou de mau grado,na sociedade burguesa.” (grifo do autor)

Outra história conta a desdita de uma jovem casada com um homem que adquiriu uma doença que deformava o seu corpo. Com ciúme da esposa, ele passou a destratá-la. Receoso da liberdade da esposa, cerceou-lhe a vida ao espaço doméstico, tornando-a escrava no seu lar. Enquanto isso, o sr. Von M…,  respaldado pelo Código Civil e pelo direito de propriedade, pode, na posição de marido, “andar por aí com sua mulher acorrentada como o avarento com seu cofre, pois ela representa apenas uma parte de seu inventário.” A condição da mulher na sociedade burguesa do século XIX reduzia-se a uma propriedade do marido, a uma mercadoria.

Peuchet conta que, certa vez, foi procurado por um médico. Este se encontrava com a consciência culpada pela morte de uma moça de aproximadamente 18 anos de idade. Pela narração seguida, infere-se que ela trazia no ventre um filho do marido da tia, do parente afim. O pudor em não decepcionar a mulher que a criou desde a morte da mãe, levou-lhe a pensar no suicídio. Porém, antes de executar a decisão, a conselho de alguém, procurou o especialista na tentativa de persuadi-lo a fazer o aborto. Ele se negou, acreditando que ela não teria a coragem de ir a até as últimas conseqüências do seu plano.

Marx / Peuchet  descrevem a situação com isenção, sem nenhuma conotação política da extirpação embrionária, deixando ao leitor a possibilidade de uma leitura crítica da sociedade, que impôs a mulher o preço de pagar com duas vidas, o consentimento a si de viver uma paixão.

Entretanto, a interpretação de Michael Löwy no intróito, “Um Marx insólito”, foi diferente.  Para o sociólogo “o caso refere-se a um problema que se tornou uma das principais bandeiras do movimento feminino depois de 1968: o direito ao aborto.” Todavia, precisa-se ressaltar, os autores são profundos na análise sucinta, mas não suscitam nenhuma luta feminina em defesa de tal direito. É emblemática a atitude de Marx ao se referir a Peuchet. Diz que ele permitiu a publicação das memórias apenas depois de sua morte para não ser confundido com os socialistas e comunistas, que como é sabido, ajunta o pensador alemão, “carecem completamente da profundidade admirável e dos conhecimentos abarcantes da nata de nossos escritores, burocratas e cidadãos militantes”.

Os costumes de uma sociedade, em termos de relações de gênero, afetam de forma negativa e diferente também o gênero masculino.Um guarda real, depois de receber a exoneração e, sem quaisquer outros meios financeiros para garantir a sobrevivência da família, resolveu dar cabo à vida. Ele dizia, segundo Peuchet, nos papéis deixados,  “que,  não podendo mais ser útil a sua família, e sendo forçado a viver à custa de sua mulher e de seus filhos, achava que era sua obrigação privar-se da vida” […] Para ele seria vergonhoso viver sem exercer o papel de provedor familiar que a sociedade reservava ao homem. Ante essa degradação, preferiu a morte.

A intenção de Marx, ao revisitar as memórias de Jacques Peuchet, foi discutir a situação com a qual a mulher se deparava na sociedade moderna. Denunciar, através dos casos coligidos e narrados pelo arquivista policial, a opressão no interior da instituição familiar que a burguesia erigia naquele momento. Para sintetizar o drama que representava o casamento para a mulher, demos voz a uma delas, Madame de Maintenon, que por volta de 1700, disse o seguinte: “Em vez de tornar felizes os humanos, o casamento torna infelizes mais de dois terços das pessoas”. (Citado por Jacques Solé, “A mais bela história do amor”, Difel, 2003).

* Sociólogo e professor da UEPB.

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