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ESTUDO PARA UM RETRATO DE HILDA HILST

11 ANOS DEPOIS

Edson Costa Duarte*

 

Aqui jaz quem tanto dela escapou,

que dela só escapa agora.

Samuel Beckett

Hilda Hilst

Aos 22 anos, Hilda declarava que “O que faz nascer a minha poesia é a não aceitação de que um dia a vida se diluirá e, com ela, o amor, as emoções do sonho e toda essa força potencial que vive dentro de nós. “(Jornal de Letras, São Paulo, 1952.)

Com seu peculiar senso de humor, em algumas entrevistas, a escritora brincava que quando a morte viesse falaria: “Que maçada!”. Ela podia ser desconcertante, e mesmo as pessoas mais íntimas às vezes se chocavam com as suas falas. Em público, sempre havia alguma tensão no ar, porque Hilda tinha um pensamento vigoroso e rápido, era imprevisível, e podia causar desconforto na plateia.

Havia um humor inusitado em muito do que ela dizia, como comenta sobre um debate que participou na Unicamp: “Ano passado eu fui a uns debates, uma coisa de educadores, e uma senhora me perguntou por que eu escrevia assim, dessa forma tão angustiada. Eu respondi: ‘Minha senhora, nós temos basicamente sete orifícios. Se a senhora não os lava a cada dia, a senhora fede. Isso não a angustia?’ Criou-se um problema horrível. Sim, a mim angústia profundamente ter de fazer essas coisas todo dia. Vem a história da finitude, da degradação do corpo. A carne acaba, e depois disso – depois disso, nada.” (ABREU, Caio Fernando. A festa erótica de Hilda Hilst. Revista A-Z (nº 126). São Paulo, 1990. p. 61.)

No cotidiano ela falava de coisas corriqueiras, dizia palavrões em tom de brincadeira. Gostava de contar sobre um jantar, no Rio de Janeiro, com Vinícius de Moraes e Araci de Almeida. Esta gritando para o garçom: “Me traz um filé de peixe com alcaporras!” Hilda rememorava o passado, tinha uma memória prodigiosa, costuma recitar muitos de seus poemas de cor. E adorava quando alguém lia para ela seus próprios textos. Às vezes brincava, depois de ouvir atentamente algo que ela esma havia escrito: “Nossa, esta escritora é genial!” Geralmente era uma pessoa para fora, se assim podemos dizer, mas havia muitos momentos de introspecção, necessários à criação artística.

Até o ano de 2001, quando assina contrato de edição de suas Obras reunidas, com a editora Globo, inúmeras vezes Hilda reclamou, em tom indignado, que não era lida, nem reconhecida com uma grande escritora. Agora, talvez ficasse “besta”, como ela costuma dizer, e se divertiria muito com tudo o que está acontecendo.

Os livros de Hilda estão sendo vendidos nos supermercados, em um deles na sessão de literatura estrangeira. Numa página na internet, http://www.goodreads.com, há um comentário de uma jovem, chamada Ana Paula, sobre Poemas malditos, gozosos e devotos: “Too deep to be compressed in a review. Just beautiful. And that’s it.” “”Muito profundo para ser compactado em um comentário. Apenas bonito. E é isso.”

Até no site de uma rede popular de varejo de móveis e eletrodoméstico, podemos encontrar os Contos d’ escárnio, de Hilda, e na capa uma banana descascada. Ela riria muito certamente. E lembraria de sua crônica “Yes, nós temos bananas”, do Correio popular, de Campinas, de domingo, 26 de fevereiro de 1995, na qual ela comenta sobre uma propaganda da televisão:

Gente… que coisa! O cara colocando a camisinha na banana! E que música mais chinfrin! Não acredito que nestes nossos tempos epidêmicos de Aids e Ebola nenhum comunicador tenha encontrado uma fórmula sóbria e eficaz para alertar o povão sobre o perigo das relações sexuais sem o uso de preservativos! Vocês acham que lá nos cafundós (que é o Brasil inteiro) seo Mané vai entender o que estão querendo dizer em meio àquela suarenta de traseiros e tetas, e todos rebolando frenéticos num frenesi dementado e patético? O que vai acontecer com essa estória de banana é o seguinte:

ô seo Mané, já comprô as bananas pras camisinhas?

já, seu Jucão

põe no cacho inteiro, viu? assim a gente pode metê pra vale”

Hilda costumava dar um conselho para os escritores: estudem muito, aprendam a escrever em inglês e deem o fora deste país, só assim ganharão a vida escrevendo. E citava a frase da escritora americana Edna St.Vincent Milay (1892-1950), “Read me, do not let me die”(“Leia-me, não me deixe morrer”). Hilda também contava, em tom de brincadeira, que Gustave Flaubert afirmava que 100 leitores eram mais que suficientes para ele.

Termino este esboço de retrato de Hilda, que em sua obra semeou a morte e a vida, com um poema de Carlos Drummond de Andrade, que Hilda tanto amava:

Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis,

alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,

em que todos se debruçavam

na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.

Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes

e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos.

Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava

que rebentava daquelas páginas.”

HILDA FIZ 2 POEMAS A DIONÍSIO FIM

 

Fiz 2 poemas a Dionísio.

Ele não veio.

Estou muito triste porque

acho que não é justo

que alguém, no caso Dionísio,

não aproveite o que eu

estou sentindo agora.

Será que os guias não

querem que eu tenha

a alegria do corpo?

É 1 1/2 da manhã e é

pena que o corpo —

que o corpo —

CORPO CORPO CORPO

e ninguém para aproveitar

Hilda Hilst contente de

seu corpo. 1

Da morte. Odes mínimas

Se me tocares,

Amantíssima, branda

Como fui tocada pelos homens

Ao invés de Morte

Te chamo

Poesia

Fogo, fonte, Palavra viva

Sorte.

 

21 JUNHO 1986

Normalmente, com as pessoas, falo de coisas normais, porque acho que minhas preocupações são de uma seriedade que me atinge tão profundamente, que não convém ficar discutindo com as pessoas esses sentimentos. Muitas pessoas me dizem, você parece uma pessoa tão jovial, fala mil palavrões, morre de rir, e depois o seu livro é tão desesperado. Então, é só através do livro e dos personagens que você pode mostrar até onde você conseguiu nadar, até onde você conseguiu mergulhar. Uma vontade que as pessoas conheçam que há um roteiro tortuoso dentro de cada um de nós e que você faz tudo para se exprimir, para se irmanar e às vezes não consegue.” (MASCARO, Sônia Amorim. Hilda Hilst. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21 jun. 1986.)

1 Disponível em: <http://www.angelfire.com/ri/casadosol/hhilst.html>. Acesso 4 julho 2005.

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Organizador do acervo Hilda Hilst (Campinas, SP), poeta e escritor, com formação em Letras pela Unicamp, mestrado sobre Clarice Lispector pela Unicamp, doutorado sobre a obra de Hilda Hilst pela USFC. Tem pós-doutorado pelo IFCH (UNICAMP) sobre a prosa de Hilda Hilst. Livros publicados: Diário de um P.M.D ou Diário de um diagnóstico (2008), Lírica Impura III (2008), Cartas para o nunca (2010), Lírica Impura I (2011).

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TEXTO INÉDITO PARA A REVISTA PHILPEIA – ISSN: 2318-3101

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